TODOS oS CACHORROS SÃO AZUIS 2.

Policias B decidem sair do hospício. Não chegam à conclusão. O que é uma conclusão? É a certeza de perder defesas. Alguém abre uma garrafa de Coca-Cola. Alguém busca uma receita de felicidade. Alguma enguia em minha testa atesta que o eletrochoque é pra voltar ao normal. Mas será que eu quero o meu normal de volta? Não sei bem sobre o grilo e o cachorro azul. São somente animais azuis. Azul também é a cor dos olhos dela. Lembra-Vovó vem e me abraça. Quer dançar um tango, mas eu não sei dançar tão devagar. Meu papo é outro. Acugêlê banzai!

Já estive no Japão. Era um lugar diferente. Bem parecido com um hospício. Cheio de gente. Às vezes, quando me lembro do Japão, me vem a recordação de Temível Louco. Era um cara legal. Havia matado seis pessoas. Estrangulado. Estuprado. Era um cara estranho, mas delicado comigo. Como já disse, ele tinha medo da minha voz quando eu falava num tom mais grave e forte. Temível gostava de jogar xadrez consigo mesmo. Quem tinha matado Temível Louco? Era um mistério que ecoava no pouco silêncio que existia num lugar como aquele. Quero botar no silêncio minha voz.
Na minha voz, um grito.
Mas o Haldol me segura. Segura meus gritos, sussurros. Eu, que já escondi muito remédio debaixo da língua, hoje tomo todos sem problemas. Sei lá se adianta. Sei apenas que sinto falta dos meus dois amigos. Rimbaud aparece e me diz que está com aids. Quer fazer um pacto de sangue comigo. Aceito o que ele pede e corto meu dedão. Baudelaire aparece e diz que quer fazer parte do pacto. Só o fato de morrer de outra coisa que não seja o chip (ou o grilo), já me deixa alegre. Morrer com Rimbaud e Baudelaire. Melhor, impossível. Acugêlê banzai!

Já estive na China. Contando assim, parece que viajei muito. Era um lugar muito bonito, cheio de gente, bicicletas e muitas nuvens. As nuvens, nuvens. Ali tive fome, tive sede, era estrangeiro e loucamente amei as nuvens longe, lá muito longe, as maravilhosas nuvens! Desenhos no céu. Quando o dia está assim, um dia de sol, um dia como este, não quero mais sair daqui. Vou dormir no verde calmo de um Lexotan seis miligramas. Me agarrar ao meu cachorro azul e fazer pactos com a felicidade. Lembrar-me da China, das suas bicicletas, da sua bandeira vermelha cor-de-sangue e finalmente, das incríveis nuvens do céu chinês. Acho que depois do pacato pacto de sangue, serei mais feliz. Quero morrer de tudo, menos por causa de um chip que engoli. Engulo os remédios. Um dia, engoli três. Outro, engoli quatro. Não sei ao certo o que devo fazer para melhorar. Simplesmente, porque sou um pterodátilo numa gaiola. Um corvo bicando o ventre de um espantalho. Um homem sem medo do terror que é viver sem medo. Never more, todos aqui não têm medo. Inclusive o Procurador Geral da República. Ele me lembra um personagem de faroeste e de filmes de gangster. Mesmo com sua senilidade, ele utiliza uma colher ao invés da faca. Aqui só tem colher. Procurador faz aquela brincadeira perigosa de percorrer todo o caminho entre os dedos com uma faca, no caso, uma colher. O velho faz isso com habilidade, como se treinasse isso há muito tempo. Pra se divertir. Deixar os ventos de adrenalina brisar.

Rimbaud aparece na hora dos vendavais. São ventos que o trazem e me fazem viver enrolado em seu cachecol. Fuma maconha. Desmancham perto de mim as baforadas que Baudelaire dá no seu cachimbo. Ele me diz que é um pai de santo. Ele me diz que tem poderes. Renova minha linguagem. Eu acredito piamente nele. Rimbaud é a tempestade. Baudelaire é o vento. Um toma éter. O outro, cocaína. Triste, sou apenas aquele que descobre que os remédios coloridos engordam e fazem, cada vez mais, eu não conviver com estes meus amigos de longa data. O que é a vida sem amigos? Sou como Emmanuel Bove que secretamente amava os amigos que não tinha. Sou amigo dos meus olhos. Eles só vêem o que quero. Olho pelos meus óculos coloridos e vejo tudo em preto-e-branco. Tudo parece um filme de Bergman.
A propósito, me pareço um pouco com Charles Laughton.
Por pouco tempo, espero. Por que estar gordo e beber café com açúcar? Tudo com muito açúcar. Vejo relógios e as xícaras de café. Cuspo bolas de sabão. Viro um trem que vai indo sem saber onde parar. Me transformo numa máquina que escreve e ela escreve o que quer que eu escreva. Ataco uma formiga vorazmente e vou arrancando pêlos do meu sovaco. Faço uma depilação. Tiro de mim pegadas. Calafrios. Certezas. Coisas que deveria fazer. Tiro de mim enguias ferozes e cubro meu abdômen com algodão doce.
É junho.
Tem festa junina no hospício.
A quadrilha de loucos está em fila. Os que tomam Gardenal não falam. Outros tomam Haldol. Outros são dependentes químicos. Outros estão doidos por uma cachaça e jogam sinuca de bico. Ninguém quer entrar na fila pra dançar. Nenhum psicótico quer dançar. Nenhum oligofrênico quer deixar de dar cabeçadas na parede. Mas Rimbaud está contente e dança sem tristeza. Está, com o perdão da palavra, com a faca entre os dentes. É um espírito cigano, espírito de índio. Espírito de porco. Espinho. Lepra. Aids. Silêncio de cal e mirto, malvas nas ervas finas. Rimbaud borda alelis sobre um pano palhiço. Voam na aranha gris sete pássaros do prisma. Pelos olhos de Rimbaud galopam dois cavaleiros: Baudelaire e eu. Todas as coisas que matam passam por mim. O que é isso? Cocaína ou éter? Que novo som é este? Tambores. Não sei dançar, não sei dançar. Ele é meu amigo, um amigo, enfim. Acugêlê banzai! Cuspo pro alto e abro um guarda-chuva. Baudelaire fala cuspindo. Uso o guarda-chuva pra me proteger. Perdigotos.
Fui obrigado a estar aqui. Não queria vir. Não quero ficar, porra! Avisem pra eles que eu sou o Charles Laughton, porra! Será que nunca viram um filme? Aqueles que estão abandonados teriam uma vida melhor lá fora, inclusive eu. Digamos que estou passando uma temporada no inferno, uma temporada nas têmporas com meus amigos poetas e atores. Amanhã me esqueço deles, mas voltam depois de amanhã. Sei que nunca vão me abandonar, amigos são para isso, não? Gari da Comlurb me convida para comer uma caixa de biscoitos Segredo. A vida é um segredo para mim. Não sei exatamente o que ela significa. No mundo de fora, procuro no obituário todo dia meu nome. Já decidi: não quero ir ao meu enterro. Como será o céu dos objetos? O céu dos relógios, das tevês, do computador, do estilingue, do garfo, da faca, das colheres? Aqui só tem colher: ninguém come com garfo e faca. Comem de boca aberta, menos a Lembra-vovó. Lembra-vovó come um pouco igual a minha avó, é magra, mansa, meiga. E ainda tem um detalhe muito importante: me dá um beijo toda a vez que passa por mim. Não sou muito chegado a beijos.

Sunday, May 31, 2009

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