TRECHO E MAIS E MAIS DE TODOS OS CACHORROS SÃO AZUIS.

Nós só fazemos eletrochoque com sedação. O doente não sente nada. Quem sabe levando uns choquinhos ele volte ao normal? Quem sabe tudo volta ao normal? Vivo com uma velha de noventa anos. Eu gosto dela. Ela defeca em tudo. É lambona pra caralho. Mas eu gosto da velha. Um dia a velha danou-se a comer isopor e plástico. Passou mal e teve que ser internada. Enfermeira! Um grito lancinante vindo do âmago de um dos internos. Por que não internam as mulheres junto com os homens? Será que ia virar uma confusão sexual geral? Acho que louco não tem tempo de pensar em sexo. Alguns são vistos parados e se bolinando. Mas isso ocorre mais nas ruas. Estou sem o meu cachorro azul aqui, estou despido do que sou. Na prática não sou ninguém. Não adianta eu gritar socorro. Aqui todos estão sendo levados a algum lugar pior. E o inferno não é o pior dos lugares.
Meu pai aparece num dos dias de visita. Foi ele quem me internou, mas eu não tenho ódio no coração. Gosto deste homem. Ele me dá um beijo.
Como você tá, filho?
Quero sair da gaiola.
Ele diz que sairei quando estiver melhor. Movimento-me em sua direção e dou um beijo em sua face. Será o beijo de Judas? Será que trairei meu pai em minha loucura? E se agora viessem dois homens e me crucificassem e me colocassem de cabeça pra baixo? Será que a cruz ia agüentar toda a banha?
Antes da minha internação maior, já havia sido internado outra vez, e outra vez tinha ficado na gaiolinha. Minha mãe mentiu-me, dizendo que eu havia ficado na ala melhor daquela clínica. Não, havia estado no Carandiru. No pior lugar da clínica. Lá onde ficavam os casos sem solução. Mas eu achava que tinha solução. Apenas algumas pessoas estavam me perseguindo, e se essas pessoas resolvessem dar uma festa para mim naquele dia? Naquele dia em que a chuva abundava, foi internado o Temível Louco. Temível Louco, quando pequeno tinha atitudes psicopáticas. Já havia matado muita gente, segundo rezava a lenda. Temível Louco me deu um beijo na face direita e deu duas voltas em volta de mim, disse que seria meu amigo. Isso foi na minha última internação. Não sei se lembra de mim.
Era hora do almoço e estavam todos os loucos na fila quando chegou o Temível Louco, que cuspia onde queria, urinava onde queria, defecava onde queria, peitava os enfermeiros, e só não era líder, porque louco tá cada um na sua paranóia. Louco não pensa na coletividade.
Eu tinha uma paranóia muito louca. Uma espécie de compulsão. Toda vez que me davam três remédios, eu tinha de tomar o quarto. Eu enchia tanto o saco que me davam quatro logo. Se tomasse três, coisas horríveis podiam acontecer.
O Temível Louco começou a comer tudo o que via. Mordeu a falangeta de um outro louco. Foi repreendido por enfermeiros. Todos os enfermeiros eram gordos. Os que não eram gordos eram fortes.
Eu sempre dava um cigarro para um louco que, na hora do almoço, dava cabeçada nas paredes. Imagina se esse doido fosse jogador de futebol. A cabeçada dele ia ser poderosa. Acostumado a cabecear paredes, ele ia estourar todas as bolas que cabeceasse. Quem sabe a seleção brasileira não o convocaria?
Toma um cigarro. Fuma o cigarro todo. Vê se não dá mais cabeçada na parede.
Eu já estava tomando tanto remédio, que estava com aquela baba elástica bovina e viscosa, como dizia o escritor.
Depois do almoço eu contava as estrelas do céu e não via nenhuma. Depois do almoço eu defecava no banheiro aquela comida ruim. Não havia nenhum interno que agradecia por aquela comida com uma boa oração. Só porque o cara é louco, tem que comer o pior. Lasca de goiabada. A única coisa boa era a lasca de goiabada. Era o tipo de goiabada cascão que grudava no dente. Os loucos comiam. Minha mãe, toda vez que vinha me visitar, me mandava tomar um banho. Eu tomava um banho onde os outros tomavam. Era um lugar limpo, que tinha de ser limpo toda hora. A cada minuto vinha um louco e cagava no chão e deixava a merda toda lá. Imagina se houvesse um louco que fosse uma pomba. Ia sair voando e defecando por aí. Não ia ter mais careca de vovô, vidro de carro, chapéu ou boné sem merda incrustada. Mas loucos não voam, fazem sua merda parados. Às vezes se lambuzam todos.
Minha mãe me trazia o sanduíche de atum que eu devorava como se fosse filé mignon. Eu tinha saudade de casa.

Monday, May 25, 2009

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