NO LITORAL DO TEMPO. POEMA DE 2000.


Prefácio


A poesia nasceu como canto e fábula. Sua origem se confunde com a gênese dos mitos. Talvez apenas com versos seja mesmo possível dizer o transcendente. Por essa razão, o poema épico e a fábula moral tenham entrado em declínio na era da máquina e da técnica, que não suportam a metafísica. A complexa alegoria dantesca não teria lugar na era do descartável. O poeta moderno, porém, apesar de viúvo da cabala e da tradição hermética, não renunciou de todo à busca da origem. Fazendo da lírica um teatro inquietante, com máscaras às vezes burlescas, ele demanda respostas junto à Esfinge-pensamento, ainda que a sentença do oráculo mental seja a pura perplexidade.


Rodrigo Leão é um poeta com vocação para a narrativa, o tecido ficcional; em seu livro de estréia, apresenta um enredo alegórico, estruturado em dez seções temáticas, sem um fio condutor linear. O argumento é apresentado de maneira sutil, lúdica, sem contrapor-se às filigranas da função poética. Aqui, o poeta experimenta várias técnicas e estilos, num conjunto multifacetado, surpreendendo o leitor com flashes líricos como “A garça interpreta em silêncio / Sua vocação para o branco” ou violentos como “naus aportam no cais / esqueletos de sombras / mausoléus ambulantes / nenhum resto de homem.”


Nos excertos mais concisos, em especial na terceira parte do livro, Rodrigo consegue versos de alto impacto, quase expressionistas, como estes: “gatos / miragens / nesgas / de aurora / intermináveis / dores / erupções / e mordiscos / vulcões / bons apenas / quando / mortos / comendo / crepúsculos”. Dialogando com a poesia beat, Roberto Piva, Glauco Mattoso, mas também com o melhor da tradição canônica, como Cesário Verde e Sá-Carneiro, Rodrigo Leão nos apresenta, em sua estética do bizarro ou geometria do escarro, poemas de elaborada feitura, fortes e contudentes, que merecem leitura atenta.


Claudio Daniel
Setembro/2000





Quem? A eternidade,
É o mar que evade
Com o sol à tarde.


Rimbaud
(Ivo Barroso)





DILÚVIO


1
Seria uma honra ser escultura,
Mas me moldaram vivo e
Eu sou tudo e nada posso ser.

Tenho que olhar sempre o nada,
Foi me dito que tudo é sempre.
E assim vi as caravelas chegando.

Vi os gerânios crescendo sem
Poder tocar ou sentir o aroma.
Cheiro só de bosta. Os mendigos

Sempre deixavam seu quinhão
Aos meus pés. Até que um
morreu no fogo dourado

Desde então alguns ministros
Passaram a defecar aqui também.
Neste bronze de sardas .

Eu esperei a chuva. Eu fiz
A dança da chuva dentro de mim.
E me libertei num dia negro.

A água desaguou chuviscada.
Pirâmides de cabeça para baixo
Era mais merda. Era o dilúvio.

Assim sai da merda para merda.

3
Pudera Deus negar os fatos
E vagar pelas pedras portuguesas.
Mas tudo está sujo até o ápice.

Deus não pode ser tudo todo dia.
E não adianta eu me iluminar.
Acender um fósforo é perigoso.

E não existem gravetos e pedras
Para descobrir o fogo novamente.
Para moldar um poema na pedra.

Além de mim o que serei.
Pra que me libertar numa prisão?
A maior clausura sou eu?


4
Dentro do escuro meticuloso.
Um enigma nasce negro.
E um enigma negro nunca
Deixa de ser um vazio eterno.

Deste lugar em que o nada
É uma riqueza tão profunda
Quanto um ânus sujo profundo,
Nasce envergando o lábaro

O último dos homens vivos.
Poderia ser um Prometeu.
Ou um Cristo totalmente ateu.

Mas o que ele é além de Deus?
Depois do Dilúvio, quem é
este Noé sem sonhos medonhos.

5
Paira sobre o planeta. Paira luz.
E luz fecunda. Fecundo pus.
Ferida linda. Infectando tudo.

Ah, se eu não pude viver
De que vale o mundo? Bonito.
Ou imundo. Mundo inundando.

Queimando. Queimando.
Olho as bolas de fogo
Colorindo o infinito dos olhos.

Asas e Asas estão voando.
Voam e mergulham no mar e
A natureza ama viver e vive.

Quem é aquele homem? Noé?
Em que barco guardou os bichos?
Ora. De que passado vim?

(Um de nós vai virar mulher!)


6
O ódio nasceu de uma senda,
Nesga aberta pela primeira vez
Em que trocamos olhares.
Foi como uma luta de boxe.
Nos nocauteamos. Éramos o resto.

Seus olhos pareciam cobras
Meus olhos estavam envenenados.
Nossa viúves esticou o nada
Que passou de horizonte a infinito.
Olhei o mar revolto. Tudo fezes.

7
O planeta era pequeno dedal.
Ele foi para a outra parte.
Golden fugiu para o fogo.

Fiquei a penetrar o passado
Dias via caravelas. Dias nada via.
Dias cotovia. Dias preâmbulos.

era o que eu não queria que fosse.
Aonde estava o azul. Deus havia
Sumido, e a merda potável parecia

potável.

Eu vivia olhando para fora quando
Lá dentro era que estava toda flora
De angústias, pesadelo e medo.

Um homem abandonado. Deixado
Rosa branca no lodo. Nódoa.
Laivo roxo na pele branca da luz.






7
Enquanto me prometia não ser
Nada que pudesse me destruir,
O Sol nasceu e de tanto olha-lo
Fiquei cego para ver o que eu era.

Veio chuva e natureza me banhou
Como quem tira um animal branco
De uma poça de petróleo derramado
Na baía de Guanabara, ano 2000.

E cai bebendo água doce. Bebendo
Turmalinas, cegonhas, garças,
Cisnes, bem-te-vis, araras, papagaios
E alguns corvos que me disseram:

“Tudo é negro”. Eu não acreditei
E eles foram dizer ao outro,
Que tomasse cuidado comigo.
Que nunca nos tornaríamos amigos.

Que poderíamos nos amar
Mas tanatos iria nos destruir.
Alisando feito madeixas d’óculos
Nossa medusas de cabelo

Olvidei o negro, olhando as rosas
Que começavam a brotar cada
Vez que lembrava de Deus e
Eu agradecia. Eu nada era ainda.

Cada palavra que eu dizia virava
Uma cor. O papel de parede
Ao meu redor ainda sangrava.
Para que servem paredes?

Não havia portas. Só paredes.
Em algum lado comia concreto.
Logo vieram as maças e peras.
Amoras e uvas. Morangos.

Quando viria o pecado original?
Quando Deus seria um animal?
Quando eu iria ser mais que eu?
Quando tirariam uma mulher

De minha costela? Quando o
Infinito ia mudar de coloração,
Quando ia voltar a ver minha
Imagem e a de Narciso no lago.

Quando viriam os ciclones, os
Tornados, os furacões. Por
Enquanto tudo isso sou eu
Girandolando sem cuspir fogo.


8
O mar de capim fazia barulho.
Podia ver as vagas surgindo
E destruindo formigueiros.

Havia também a lembrança
Destruída, assim apenas
por lembrar d’outra existência.

(As pipas coloridas galgavam
o céu. O tosa ia acontecer
qualquer momento. Dá-lhe

vento). O que é a infância?
É uma outra existência.
São as pipas de ontem sem

os ventos de hoje.
O eu é um ladrilho de nuvens.
Onde estão as pipas? Onde?

9

Preciso de sonhos amarelos
O Sol sai de sua moldura.
O prata veste a noite escura.
Quando Deus será quem quero?


10
Travo guerras colorindo folhas,
Caídas no abismo que construí
Nas verdades que ocupam
Todo espaço nessa mente crua.

Aqui vejo chamas e água.
Tanta abundância para nada.
Aos poucos isso aqui vai virar
Um paraíso, pelo menos é

Isso que passa agora pela
Cabeça do poeta que escreve
Este verso. Assim não fujo
De mim e minha necessidade
.
De dizer logo tudo. Antes que
O abismo cresça tanto e eu
Não possa mais saber
Se estou dentro ou fora dele.


11
Passei a comer tamarindo
E comecei a ver alicerces
E pilastras sangrando fogo.

Engoli aquelas imagens ígneas.
E passei a pensar se eu estava
No inferno. Mas logo nasciam

Flores e beija-flores e novas
Dores. Tantas quanto possam
Imaginar sem imagens.

12
Saudades dos vincos que não
Terei no rosto. Ravinas nascem
Meu olhos sangram o azul.
Ninguém me idolatra agora.

Ninguém me ignora também.
Desde que ganhei carne e toco
O mundo e o que restou dele,
Ninguém nasceu além de mim.

13
A pior prisão é a mental
Fazer parte do indivisível.
Ser escravo da alma abissal.
E não poder ver o invisível.

Antes eu só tinha o infinito.
Tenho tudo menos o horizonte.
Hoje o deserto é meu rito
E tão meu, inesgotável fonte.

Fonte. Ponte entre mim e Deus,
Se é que ainda acredita em mim.
Tudo aqui é tão meu de meus
Eus. Deus e criador ou cupim?.

14
Uma onda que se comia
Uma onda em meio a ventania.

Comeu também meu castelo..
Abrindo uma boca de 10 metros.

Quando será que quis existir?
Nas coisas que eu fiz ou sou.

Ser é tão pouco e não ser, zero.
Ë o Zero. Não ser é zero. Pode

Ser zero, zero, zero. Tudo é
Zero. É o fim e o início.


15
A garça interpreta em silêncio
Sua vocação para o branco.

Me perco naquele vôo que
Submerge no lago dourado

De Sol. A natureza se esconde
Para sobreviver. Eu dou um

Grito e minha voz estoura
Os meus tímpanos cantam.


O CICLONE

1
o ciclone nasceu sopro branco. o lago tremeu no calafrio das margens. venta. dentro de uma concha (eu) debuxava, entalhava o poema. tatuagem rupestre. pontes se abrindo, pernas, olhos, boca e tudo mais que se abre meio enquanto folha, estrela, pórtico, ponte, átrio, portal.

2
aqui o vento faz a curva e volta cardume: vida, vinda em linhas e puçás. silêncio e terror: sêmen. tudo ciclo, fogo-fátuo, rictus. doses de aiperon. vitral. torpedos. chamas. cavalos de crinas brancas. mucamas. caubóis. comboios. joios. jóias e círculos. pulseiras e fitas do senhor de bom fim, em cada início e meio. o ciclone ejaculou por todos os lugares. no futuro, veria que os filhos do ciclone eram todos homens castrados por ele. prometeu acorrentado.

3
riscar no vento, esculpir na mobilidade. preencher a inexistência com o nada. buraco negro. num átimo o grito agônico. como se o ciclone varresse a primavera. vivia comendo bisnagas de frio e bebendo café-petróleo do futuro. parece que tudo aconteceu enquanto eu penteava o cabelo. enquanto isso, o mar cheio de surfistas e poetas que se beijavam conspirava contra a violência espúria dos hipócritas.
4

será que um dia o silêncio será ouvido, e cravarei um punhal no peito da morte? então, poderei dizer das pegadas do fantasma chamado pai. ainda existem folhas poluindo as palavras com figuras de linguagem. tudo poderia ser etéreo. tenho feridas ciclônicas, agora que acabei de conter o ciclone dentro de uma garrafa e o mandei para um instituto meteorológico. mandei junto (em atach) uma outra mensagem feita de nuvens coloridas e algodão amargo e pó-de-mico e bicho-do-pé. que se cocem em falésias alcantiladas.

5
vejo um ciclope cego e alguns anjos correndo em esteiras ergométricas. a branca de neve anda de mãos dadas com o curupira. a emília dá um chupão no mickey mouse. fazem amor hércules e o pintinho frajola. enquanto isso, zé carioca beija o capitão marvel. contam-me histórias que não sei se vivi. escarro para o alto porque sou um chafariz, chafurdo.

6
fogo amarelando o horizonte. sombras são mulheres de preto ou garças de luto. a mendiga, cheia de latas, figas e espelhos que refletem imagens. a tarde invade o sol, o mar e a eternidade (soldados de chumbo, presentes da infância. as bonecas eram apenas mulheres do falcon.) ouvi uivos dos castelos, areias em minhas mãos.


7
tudo já feito, tudo por fazer. toda minha família estava no circo. os palhaços comiam manga, engoliam o caroço e ficavam entalados, vôos de acrobatas. (quando acordei, com pterodáctilos, nova visão do mundo.) soltei-me, e minha família tinha ido toda embora. tudo já dito, tudo por dizer.

7a
ciclone clona clones e a vela vela a velha e ovelhas aquecem os lobos e o cosmos come buracos e haicai: amordaçaram/o silêncio/ecoou.


8
ciclone, disco em alta rotação. o vinil virou cinzeiro, o ciclone é em senurround cospe mantras em dobly estéreo.

VULCÕES


1
abrolham
vulcões

pela pele
erupções

compõem
o amarelo

elos de luz
pus em pus
2
cavalo sem
crina branco

cuspindo
falésias de

seda

turquesa
todavia mar

bordejando
aspergindo

gotas

água
de calor

vulcânica
quase ar

quasar

pulso
móbiles

redoma
aquário

de fumaça

cospe
sombras

cadências
cardantes

cabelos

crinas
d’éguas

bolas
de sabão

explosão

3
fios de ouro
preto

virando olhos
claros

fumaça, fuligem
cinzas

apenas tragadas
d’eu(s)


4
deitado
olho céu

magma
jorra

da jarra
- corpo

copo
de cinza


5
gatos
lambendo

a pele
de filhotes

morreram
na guerra

dromedram
meus desertos

gatos
miragens

nesgas
de aurora

intermináveis
dores

erupções
e mordiscos

vulcões
bons apenas

quando
mortos

comendo
crepúsculos

6
brisa
maquinal

matina
eterna

vento
de bolso

barcos
velejando

miragens
aquosas

- sopro
endêmico

mixando
suores

odores
espinhas

rugas
meleca

despojos
restos

andrajos
orgânicos

verdadeiros
oceanos

de frios
sonhos

pesadelos
e inferno

7
rastafari
safári
em mim

elefantes
trombetas
esporrando

sangue
saliva
seiva e pus


8
via Delfos
delfins
e hienas

e sua cria
de corvos
amestrados

bicavam
meu ventre
arrancavam

palha
pulhas, palha
palhaços

9
por dentro
contenção

por fora
explosão

assim me
defino

sou um
vulcão

IV – Canto ao Abismo Interno


Me soltaram há mil anos
E eu estou caindo.

Me disseram que as sombras
São inimigas

E elas são as únicas coisas que vejo.

Cuspiram na minha fronte
E tiraram minhas falangetas.

Mas eu não sei se isso aconteceu
Ou é este apenas um canto ao abismo interno.

Há camadas de abismos.
Nenhum colchão à minha espera.
Nenhuma ponte.
Ninguém no pódio.
Nenhuma medalha.

Toda velocidade me bloqueia.
Meus galhos
Meus esboços
Meus edifícios
Meus calafrios
Caem comigo.

2
Eu sou o culpado por terem destruído os meus moinhos? Por que os meus moinhos odiavam ventos? O que eu queria depois de ser uma estátua? Que o pára-quedas se abrisse feito um cogumelo? Que a bomba atômica explodisse espalhando pétala palavra em flor. Plantar.

3
Semear papagaios colher aves de rapina. Horizonte e grades. Cocada e fezes. Cravo e rosa. Tese e antítese. Dicotômicos verdes/azuis tendem a orbitar cabelos negros. Lança-me o teu farol que me reflete, desenho flutuando sumindo, subindo, descendo.

4
Pégasus lança chamas pelas narinas . (Nesta altura o cavalo ganhou fogo e o dragão ganhou asa). A guilhotina e os postes apostos para expor a apoteose quando eu chegar lamina quente de cortar água e angu. Cortarão meu pedaços e farão lanterna com meu crânio e sequer poderão doar meu corpo podre. sou um animal grande no corpo de um pequeno. As gorduras de minha alma não vão além do bronze.

5
Devoro-me
Arranco a pele que ainda me sobra.

(Unhas chupetas seios pirulitos
grelos falos)

Flores nascem de veias.
Veias velhas levam a seiva

Iremos enforcar alguém
nos meus galhos

Se conseguir deixar
que a Eternidade se apague

junto com seus abismos
e praias particulares

V – O Outro Estrelas



1
Construí um telescópio
Para ver estrelas no outro,
Ouro em aura luzificada

Não começou a guerra
Ainda quero falar-lhe
De como a solidão colide

Com as estrelas que somos.
Antes de nos digladiarmos
Simplesmente por ser assim

tal nossos deuses querem.
(Subtraio de mim sinuoso
Vejo barcos no paraíso.)

Gôndolas rasgando o fogo


2
naus aportam no cais
esqueletos de sombras

mausoléus ambulantes
nenhum resto de homem

(parece que vejo fogos
quando olho o sol e o mar

um se afogando no outro
e um comendo sua baba

bebendo do sangue
bebendo tudo in natura)

3
O Outro Estrelas caminha sobre as águas.
Labaredas mordem seus pés.
Ele divide o oceano ao meio.
Mesmo assim eu não entendo ainda.
Outro Estrelas passa por mim e me dá um beijo.
Há uma fábrica desativada que joga seu lixo
no rio de minha veia principal.
As escamas do peixe me protegem neste dia frio.
De olhar o Horizonte quase vejo os olhos dele.
Náufragos de si.
Num mundo em que não existem mais restos no prato.
A última refeição foi servida há milhões de anos.


3a
sublimo o limbo
te olhando fundo

catapulta-me de volta
novos abismos

pêndulo e pingente
os pés do crepúsculo

as mãos que buscam
nervosamente o santo


4
A loucura é um óbito diário.
Faço um centenário.
Procuro pescar peixes novos.
Mas só tem baiacu.
Quando criança um amigo
coçava a barriga do baiacu e
depois dava um bico no peixe.
(Parecia que o baiacu não servia
como alimento) Mas quem pescava
para se alimentar?
(Esse mesmo amigo tentou me bolinar
quando eu tinha 12 anos)
Será que teria uma vida diferente?
Nunca amei homem algum
amando a todos. Sei que não entenderam
o que digo e dirão que eu sou veado,
isto pouco importa,
nada importa tanto quanto eu.
Sou aquela fonte de águas cristalinas
desinfetando tudo que é doença.
Sou água mineral com gás.
Sou o sonho fluindo feito sangue
da mão de um suicida.
pulsos cortados e coroas de espinhos


5
É a primeira vez
que vejo um ser humano
de perto. Mesmo com
águas límpidas,
fiquei com medo de
mergulhar em mim,
ao olhar o espelho d’água.
Iria me afogar?
Ou sairia do mito vivo?
Peguei uma tulipa
e enfraqueci um soco
que iria vir.
Dei-lhe um abraço
demorado.
Mostrei minhas chagas
e enquanto trocávamos
afagos, fui sentindo
que flutuávamos.
Éramos anjos.
Éramos animais sem
asa e quando me lembrei
disso, voltei a cair.


6
Os pára-quedas foram acionados.
Mesmo assim caí de boca.
Dei um abraço em meu amigo sem saber se voltaria a criar ventos e moinhos. Quem nasceu primeiro foi o vento e o moinho veio depois junto com Cervantes. bebo uma coca e tudo está dentro de mim e em minha mente. Caio, magma que sou. Enquanto eu me derreto. Ferro de novo. Verão de Novo e um pesadelo como a vida real.
Quem me escolheu como amigo foi ele. Depois fechou todas as portas que agonizavam sem pênis. Aí me tratou como eunuco. Eu nunca fui tão maltratado.
Eu caía e apertava a sua mão. Viravam castelos os nossos pensamentos. Sem nos tocarmos produzíamos uma energia lasciva. Colidíamos com pensamentos etéreos. Havia a nossa volta índios Caimam. Índias gostosas que se abriram agüentando a vara fétida de meu sonho. Surgiram canibais e os homens brancos foram todos para o caldeirão. Alguns comidos sem tempero. Todos gritavam dentro de seus berros e outros diziam violeta branca rogai por virarmos flores e seqüência de batidas de rap.
A água que me borbulhava foi sorvida sopa de meu sêmen e de meu melhor pedaço. Santa carne. Santo Deus pagão
Os pára-quedas se abriram na noite.


7
Fogos de artifício saudavam o pássaro negro.
Bolas de fogo eram devoradas por ciclopes.
Um anão soprava. Um anão qualquer.
Uma dezena de anões comia um bolo de aniversário
temático. Anões comiam a Branca de Neve.
Meu pai gosta de Fellini.
Quem não comia pedaços de amigos morria de fome
Chegavam barcos azuis. Cresciam violetas de prata.
O mar mais azul que vi. O som mais agudo na concha.
Chovia Prozac, Lexotam 6, Hoipnol 4.
Talvez o diabo esteja ao meu lado.
O demônio é só aquele que mastigou o outro lado.
Não comeu e tem sempre na boca o sangue da noite.
A fome de fogo.
8
Quem comeu
os pentelhos
da aurora?

Foi crepúsculo
distendeu
o músculo?

Abriu
o frontispício
deus sorria

indo
rindo
pro hospício

9
o hospício é uma viagem
riem os que são normais

loucos não são animais
plumas do cão sem plumas

legado: pão com manteiga
leite bem ralo, água

fazer a cama toda a manhã
Cid e seus desenhos


10
o primeiro beijo da morte
foi o segundo beijo da vida
contados beijos por esporte
e os outros por despedida

há beijo pra todos os gostos
uns encerram a fatalidade
há beijos de total desgosto
bons os de cumplicidade

e todos beijos não apagam
o batom em outras partes
partes que alguns afagam
chamando-as minhas artes

há quem beije como a vida
que coloca lentes de óculos
para que os poetas da antiga
escrevam beijo com ósculos


11
o vento hospeda
tempestades verdes
e simulacros
estão no móbile
vários fios de
alta tensão
que parecem pegar
minha mão

e me tocam volts
comichões sem início
baleias rangendo os dentes
eunucos abanando o tempo

colchões d’água explodindo
e o elefante
deitado numa banheira
bebendo água gasosa

palavras saindo da minha boca
Vênus despida
nuamente fleuma
Tordesilhas

12
Tudo é hospício.
Até as lápides frias
são hospícios.
(Dentro de um túnel,
eterno trem.
Luzes apagadas e gritos
no negro
e no amarelo dos holofotes,
assinatura do estado.)
- Vendo ouro!

Tudo é hospício,
Loucura não é dádiva.
Loucura é ávida morte
não é impávida sorte.
(Assim caminho com meus
vinte e cinco tentáculos
e não me atrapalho com as duas pernas
de pau e com o grito
que ecoa:
- vendo ouro )

13
outro estrelas
chegou
pedindo poesia
e almoçou de minha fé

pedi que voltasse
outro dia
assim como as ondas
que o trouxeram de marte

outro estrelas pensando
alto
gravou seu sorriso
postergou o silêncio

outro ano outro estrelas
me perguntou
o por quê chamou
como eu o chamo:

somos outro estrelas
e eu não sei
quando os quadros
estarão com seus is

e nossos desenhos
pendurados
em pregos
como os enforcados

14
assim que surgiram
os dedos
outro estrelas defecou
sua fome
saindo de minha boca
como se tivesse engolido uma salamandra
estava em Mallorca
e eu estava aqui
nesta loucura entre brumas
bulindo numa lápide fria
pedindo a deus tudo o mais que nunca deu:
- pipocas amarelas
- discos cor de laranja
- laranjas negras
- brinquedos que não quebrem
- crianças que não chorem
- músicas sem muitos acordes
- elaboração de sonho
- castelos
- areia
- área aérea para cair
- dor eterna
- palavras exatas



15
cospe chamas
Emily em mim

divina dama
de bronze zin-

co
zen

do
cor

ar
co

ir
is

o
por

sol
chão

18
vulcão
de palavras
retalhadas
telegráficas
envolve
noites
e calafrios
e cachoeiras
e vulcões
internos
calças
bufantes
voando
varais
degraus
andam
escadas
se afastam
e vento
e verve
viva
vem
no
eletro-
do
cateter
bisturi
micróbio
vermes
e beijam
moléculas
átimos
resistem
existe
o cavalo
plumescente
da noite
piscando
neonights
and days
in day out
door
com letras
e baba
e sangue
escorrendo
inundando
o átrio
promontório
aqueu
aquoso
deus
comido
por pigmeus
um deus
ateu
parte
de marte
partimos
parindo-nos

19
duzentos watts iluminam
quinhentas sombras escondem
na noite o silêncio afaga
enquanto outro estrelas olha

o píer vazio cospe as ondas
e a ressaca parece um ímã
levando o paraíso e trazendo
o inferno transita inóspito

20
repelimos nossas bocas
as diversas
- todas ocas – só as nossas:
loucas

poucas falam agora
paredes para as horas
em que semear
sem sêmen

sem vaginas
escolhemos um ao outro
é pela boca que entram esgotos
pelo anus nos humanizamos

nunca mais nos encadeamos

VI – A Guerra


1
bonecos de chumbo
comiam vatapá
enquanto a barbie
dançava na sombra
e o falcon barbado
rebolava travestido

alguém brincava
no silêncio sério
de meus dez anos
olhos fora de órbitas
catapultados, molas
pontas bolas de gude


2
Desciam das profundezas.
Subiam das montanhas
Folhas farfalhavam o horizonte
bocetalmente arreganhado e vermelho
Van Gogh

A tempestade limpava confetes
e serpentinas
A folia agora era repetir na eternidade
as cores,
os sonhos,
os odores
do carnaval

[Havia uma nau acariciando o píer
E uma nova carranca surgindo
Era mais um navio sem ninguém
uma guerra por vencer
inimigo que não tinha
Era o esqueleto de minha infância
(Havia partes de pai e mãe nele)]

Doeu no azul daquele mar que chorou
lágrimas de Portugal
Chora lágrimas ruborizadas
Vítreo sangue
Aviões sobrevoando
Garças aspergidas
Bombas de flores
Tiros de negro chocolate
Perfurando as emacias
[falésias
girandolando
na carne
(talvez eco
talvez fauna)
floração
de glóbulos
inquietos
átomos
átimos
istmos]


A guerra estava apenas começando


3
Ela babava sangue. Cuspia. A sua língua era longa e fina. tinha uma cabeça de cobra na ponta. Comia cabeças. Poderiam te-la chamado de Medusa. Mas não existiam tantas cabeças nela até o momento em que ela metasticamente começou a produzir bocas em todo o lado. Chegando ao istmo de meu corpo, senti-me chupado para dentro dela e para fora da terra. O vermelho derramou espelhos.

4
Um locutor me anunciava:
“Direto do útero materno
para o inverno do inferno

Rodrigo de Souza Leão”
fui aplaudido e assinei
a carteirinha de sócio-atleta


5
Percebi que havia flores a cingir-me
enquanto alguém dizia
trégua
Mas eu queria guerra
tal um tigre corre pra corça
ávido
e perdendo as listras
de seu color bar
(parece que ele vai furar o horizonte)

6
(o machado medieval nas paredes
o aríete penetrando âmago
e duzentas formigas
cada uma com um volt
na testa da metalinguagem)



7
A guilhotina estática
A lâmina sulcando o horizonte de bocas
Rimbaud aplaudindo a dicção
de Outro Estrelas

Meu inimigo foi comigo
por que sei que é o meu inimigo
Se soubesse ser o que eu sou
seria ainda o carrasco
- este que encara meus olhos
e talvez seja só Narciso

8
Flechas sibilam no eflúvio branco
Trêmulo
sangue sulca ravinas
Martírio etéreo
A alma ilhada
Sem responder comandos

contrl alt delete

Erguido a guincho
A forca de prata
no fundo uma coleira
contra a loucura

Meu psiquiatra
Aquele que não disse quem eu era
Fugiu da neurose
Contando carneirinhos
(parece que eu achava ele forte demais
para revelar os podres e
o frescor
de meu interior repleto de garças
às vezes negras)

os urubus
8a
Voam garças de outrora
Voam com bombas de nêutrons
que é pra alguém ficar
com o ouro
com a bauxita
com a prata
(mas também com a lata
e um filhote de baleia dentro)
suicidado
com a própria placenta

9
bruma na magna
carta dourada
dromedários
negros
voam até Tétis
tudo voa
segure os móbiles


10
depois de depois
é ser eterno
(talvez seja
a maior imprecisão
do inferno)
algo como conter
com a voz um pelotão de violetas
virgens
hímens
complacentes
desfilando no hermético
carnaval

(seriam baianas
rodopiando
piões na desordem
do caos sem estrelas
nuvens
brancas
algodão
de galáxias
rubras
e estáticas?
ou estéticas?)

11
a guerra era eu
era o outro
e suas estrelas

no peito vozes
inquietamente
mobilejantes

é uma guerra
lúdica pratica
xadrez tática

peão avança
rainha no rei
chão branco

chão preto
petróleo pus
cavalo

bispo/roca
troca- troca
chão negro

12
tabuleiro
ou campo
de batalha

navalhas
pedras
flechas

soldado
inimigo
conhecido

há flores
na pele
tapurus


13
em si
o não ser
se alvéola

a rede
presbíteros
não são

apenas
andam
nas águas

anáguas
nuas
e molhadas

14
front
frontal
frontispício
hospício
terno
é interno
pulsa
implode
e ousa ser
algo mais
que parecer
cometa
loucuras


15
interna guerra ígnea
o sol e o fogo queimam
a lápide do vento
uma garça no alçapão
uma mancha negra
flutuando etérea
pelo eflúvio d’água
e um silêncio quebrado
pelo farfalho divino
das estrelas rangendo
daquele sol laureado
pelo ouro da aurora


16
a guerra continua
a desvelar vela pura
linda que flutua
no front onde dura
a eternidade ao lado
dos corpos que jazem
dos pobres coitados
mortos o que fazem?
nem acendem a vela
nem as podem apagar
as luzes mais singelas
são feitas pra olhar
lá de cima das cavernas
onde o sopro hiberna

17
E a espada
lança chamas sobre o capim

Logo estaremos em Londres
Naquele frio que seus olhos me hospedam
Eu quero o fogo agora
para beber antes da degola

A lâmina aquece o sangue
Jorram flores

Apenas um eunuco chora
A lágrima altiva
de quem serviu ao rei
e cantou todas as estrofes
do hino

Então um gozo
fez pálida
a minha fronte
pude vê-la
naquele horizonte
de espelhos
(ou era um truque de mágica
e o mágico divertia a tropa
antes
de chegarmos a Londres)

18
Sex Pistols tocava Vivaldi
Num pub fedorento
com melecas de moléculas
como móbiles
O céu se encabulava ao ouvir
a única estação que havia
Nuvens e garças evacuavam filhos
Era inverno o ano todo
E aquele sonho acabava

Velvet tocava Vivaldi
E as frutas tão crescidas
e cada vez mais podres
caíam na neve fétida
de purpurina prateada
Naquele dia em Londres
era tudo maquiagem
no rosto das ruas tudo
era passagem


19
a guerra encerra o eterno
um ser humano vivo
debuxando seu retrato

a chama acata o inferno
barulho/farfalho via crivo
da vida só o sumo/extrato

da vida só o que for exato
cartesiano ou abstrato
pouco importa o fim

desabando feito fezes
há vida ainda em mim
guerras ainda que rezes

20
Foi em Los Angeles que encontrei
Outro estrelas
falava ao Horizonte
e cantava odes fáceis
masturbando o Inverno
Daquela relação
não surgiram filhos
e nem de nenhum homem
com um deus ou deusa
Podíamos ouvir o inverno
provocado ao êxtase
e reinventando o frio
ejaculando purpurina
de todas as cores

21
quando resolvi arrancar minha orelha
e navalhar meu olho salvador dali
surgiram exatas três dinastias naturais
o tempo, o espaço e a velocidade

o tempo recaia selvagem sobre o capim
as cabeleiras ao vento fagulhando:
cabelos xucros do rubro azul
ampulhetas de cocaína e narinas de bronze

o espaço de uma caixa de fósforo
era suficiente para nos calarmos
e ouvirmos ecos dos canhões
e baterias antiaéreas da Portela

a velocidade era um bólido
cruzando a charneca oitocentos
e cinqüenta quilômetros por hora
era vertigem e tortura gota na testa

o tempo, o espaço e a velocidade
formavam uma equação perfeita
e naturalmente prolongamos
o cobertor sobre a gênese solar

assim podíamos ouvir os acordes
de purple hase e depois Hendrix
pedindo peace and love
e foi o que tivemos maconhados


22
nosso sangue foi contaminado numa hemodiálise
e eu perdi todas as palavras vermelhas
o meu sangue borrou a parede de branco e azul

comi seus olhos com uma colher de madeira tosca
comi suas vestes depois de queimá-las
continuei magro e iluminando o pôr do sol

meus faróis serviram para cegar e indicar
todas as vezes eu não sabia nem aonde era o norte
por isso todos comeram abismos

náufrago de mim fiquei parado espantando corvos
e não deixei que bicassem uma vez seu rosto
e hoje todos se distanciaram, até meu sonho com você

23
tudo máscara
a ponte entre nós
balões de amizade
e corações bexigas

voando tudo
todo o aniversário
a luz venceu
cuspindo trevas

no leilão
crepuscular deste
dia, eternamente
imobilizado

as verdades
cobras olhando
e iluminando
meninas dos

olhos claros
faróis em nós
borboletas
amarelas

24
depois da morte vem a humildade
depois da puberdade, o silêncio

ele diante daquele oceano chip
poderia ter dito: - atualize o mar

atualize o céu, e todas as imagens
necessárias para um poema estranho

porque meu mar é acinzentado ainda
e de vez em quando neva açúcar

e fico mais gordo com a chuva
eu me humanizo olhando nesgas

féleias trupilias eululicas carbólicas
depois de minha morte fiquei humilde

adoçando os bicos dos pássaros
sendo parte e vegetação com plumas

até o ápice envergonhado da ereção
daquele canhão que deveria cuspir-se


VII – ELEGIAS AO NADA



1
dentro da mensagem
havia uma garrafa
ou seria uma mensagem
dentro da garrafa

ou ainda uma palavra
ou elegias alegres
ou palavras bêbadas
daquele oceano todo

daquele oceano todo
a mensagem engravidou
e quando me disseram
que não era verdade

percebi que era
o tempo daquelas
elegias em que um blues
parece frevo ou samba


2
aquela vida de cais
que não deixa
os barcos beijarem
as pedras
não existe mais
só yemanjá
vem vezes nua
falar com netuno
e seus cavalos

os barcos
não se chamam
mais silêncio
e não farfalham
e não desfiam
as cordas


3
há uma jangada
pluma arfando
afundando
gota
bolha
naufragando
no nada


4
o nada é apenas
o resto de ar que têm os submarinistas
talvez o cianureto
os tire do aquoso inferno
interno
da vida
ninguém se salva


5
profanando
o corpo heráldico
esculpido em mármore
estátua de seda
opulentamente negra
feroz pantera
me olha nos olhos
tanto verde
que defloro a botânica
procurando nos livros
aquela flor nobre
pétala/música/melodia
canção dissonante
e alguns ecos
de criança


6
tudo se apaga
no nada
tudo se apaga
translúcida
chama
chama-me
ao nada
onde tudo
se acaba


7
e assim se
naus se afogam
cheias de vento

em breve o que
está por dentro
virará tesouro

poderei trocar
todo o leite
por ouro em pó

todo o pó
por um nariz
dourado ouro

8
assim os índios caminhavam
pelo arco-íris junto com os arcanjos

e havia uma placa com o nome de
um desaparecido na mão de cada um

no palco diziam do bem maligno
que é dar uma esmola ou uma estrela

pra naufragar no peio oco de outro soldado
(não perdi nada que a lepra não me levaria)

9
estive
esquivo
vivo
privando
ando
tosquiando
a lã
do trocadilho
na fazenda
hospício,
abelhas
fodendo
pólen
polido
porto
vôos
anfíbios
insetos

10
não há nada que o sol não revele
principalmente hoje
quando a neve fecunda o óvulo negro
do asfalto
e dessa combinação
surge o óbvio
larva não é carvão
pinga não é chopp
chinelo é pra quem dissolve a prata
cuspindo luas
aquosas
no café
combustível
querosene


11
e fustigado
punido
no canto
de uma jaula
com a missão
de se eternizar
num grito
eis o poeta
que ruge
com todos
os pelos
do corpo
arrepiados
eis o poeta
domesticado
pelo
pânico

12
então masco um colibri
só para ter seu vôo
só para aprender a voar
mas deus impede o poeta
de tentar vôos cegos
e se soltar dos cimos verdes
deus impede de ser morcego
sendo o poeta um vampiro
que suga outra poeta
deus impede o ser humano
de ser um poeta e um vampiro
pelo menos é o meu deus
o que beija a minha jugular
o que me matou de aids

13
tantos baiacus
voando cócegas

tantos meninos
engordando

quantos ventos
lutando na biruta

voando cócegas
quantos céus em mim

baiacu engordando
explodem infinitos

14
o nada então sorriu na penumbra
formada de um coqueiro
com a rede
o poeta é o seu ócio
é o plágio
proposital
como aquelas baleias
que repetem
os golfinhos
repetindo
nas anáguas d’água
a implosão
d’ondas
no promontório


15
cuspindo o fogo
são Jorge e seu dragão
aquático
sem escafandro
ou rarefação
usina
aquário
cavalos marinhos
pulmando
quem sabe
um puma
lance borbulhas
e dentro delas
cogumelas
exista ar


16
no lume
o nada envolto em luz
o vaga-lume
as vagas destroçando-se

o nada envolve o tudo
o tudo envolto nada
e o vaga-lume,
uma lágrima vulcânica?

naus à vista
novos esqueletos
do que nós fomos
bandeiras e velas

carcaças e couraças
tudo em tons de cinza
cada esperança
chega morta ao nada


17
assim a cidade
cresce por metástases
impregnando o silêncio
com cicatrizes fáceis

dores já curadas
marolas outrora ressacas
ressacas outrora nuvens
olhos do mesmo espelho

perturbados de se verem
cuspindo branco cinza
mar mexido
tanto branco
para me afogar


18
bromélias rubras
recebem as cinzas
quase azuis
dos seus restos

no pólen aquático
o jardim florido
botânico encontro
da garça e o biguá

da respiração
com o ar


19
sobre o nada
nada mais tenho
talvez em algum
encontro com Sol
possa abrir
todas as reticências
que são minhas sardas
(quem olhar para mim
verá que sou um cosmos
branco com planetas
pretos) quem olhar
verá que ao contrário
do cosmos, meu nada
se encolhe
e não se afasta

VIII – O CIRCO ZOO LÓGICO

1
algum palhaço
apontou um revólver
e divulgou seu nome
ao matar um macaco

o macaco morreu
desconjurando
o palhaço ria
pela primeira vez

tantos macacos
vieram para o enterro
dar pêsames às núpcias
do palhaço com a dor



2
a tromba do elefante
limpa banha molha
os animais menores

tempestade e pi
po
ca
porque quando escrevo agora
tudo chora
e o barulho da chuva na janela
lembra o da pi
po
ca
na panela
e o elefante no circo
e os animais menores
lascivam
estáticos
escrutam
o trapézio
(e a cadeira
nas rodas
do trapezista)
que quer vôo
mola
motor
motriz
lágrima
grinalda
e véu
e vento
chuva
molhando
o poema
água
daquele elefante branco
sem o nó
na tromba


3
o transferidor se abre bailarina
em poucas cores
piruetas
e montanhas russas
e os alvéolos
avelãs
de delicados
se esticam
na ponta dos dedos
linha
finita
limítrofe
elástica
tensão
máxima
ou o poema
dança
nas ancas
dobras
e dribles
corpo
agulha
Penélope
baila


4
fleumam
tigres de bengala

begônias
girandolando
fogos
e artifícios
encarnados
na cor
d’ouro

listras
zebras de bengala


5
a cartola gigante
contém elefante

parado um instante
o mágico arfante

fez força demais
ao puxar animais

elefantes carnais
pelúcias peluciais


6
descansa o equilíbrio
malabarista do falso

enigma prenhe
criador de eternos

joga ótico
efeito bola

mão para mão
equilibra os ovos

ovacionado
palmas silábicas

urros êxtases
enfim cardume

7
bailam baleias
nos violinos
dos delfins


8
picadeiro cheio
respeitável solidão
daquele prisioneiro
andarilho véio leão
preso em seu crime
emoldurado na prisão
procurando o que rime
é fácil rimar com ão
difícil fazer infinito
de cada dia carcereiro
e revelar-se mosquito
amarelo faroleiro
cegando as carrancas
naus flagrando cais

9
a privada do cuidado
as fezes são banheiros

bostas são coisas lindas
quando lembro defeco

ouvindo o barulho
cachoeira cascata

verdade é a descarga
abunda em água leva

larvas lavram vermes
tânia solium na espada


10
circo
sinto
nalma
presa
posto
aquis
tudos
gosta
sinto
nãoma
labar
isara
posta
bosta


11
a barba
da mulher
pegou fogo

o tambor rufando
surfando
suor no infante

o canhão catapulta
os olhos
do homem bala

o canto
da sereia
irapuru-se cigana
a linha
da felicidade
estica
cabelos arrepios d’aura sombra sobra contornos quiromantes pélago e saliva beijo na tomada ou trovão in natura

preciso de atalhos antolhos para me encontrar?
óculos retráteis


10
grilos
iluminam
os trilhos
ruminam
camelos
o silêncio
do pelo
denso
acarneirado
olhar
do leão
garanhudo
a rebolar
na fricção

11
A noite chega diluindo o café no copo de leite
enquanto ouço ecos do respeitável público.
(A plantação balança como um mar em chamas
farfalhando na brisa
os cabelos de capim gordura).

(Tudo parece estar entre parênteses
quando um trapezista não segura o travessão e
c
a
i
nas reticências).

A manhã chega diluindo leite no copo de café.

O circo foi embora.

12
O abismo abre sua grande boca.
Devora os suicidas
vão primeiro,
depois os dias chegam mármore
e se metamorfoseando em barata, ouro,
incenso, mirra
esgoto que abre minha boca
para os dejetos do que foi o circo.

Pau, pedra, samambaias no percurso
inerme
minha imensidão de amarelo,
também roxo, azul, cinza.
Quando a pintura do cabelo diz a idade,
eu caio diante da Lua prateando tudo.
Só agora, duzentos anos depois
percebo que o circo esteve aqui.


IX – O ATAQUE DOS ANTICUPIDOS



1
ele me pede elipse
sou todo eclipse

Olhos de pássaro
nunca se cansam de infinito.

de poleiro argolado
alpiste aqua vox

É o som do claustro,
bebo(a) do antivôo.

2
o copo quebrou
e não foi preciso mais nada
além da voz de Yma Sumac

o copo quebrou
no agudo do passarinho
dentro dela

o copo quebrou
e os cacos ficaram no chão
para algum faquir sorrir dor

o copo quebrou
e toda criança sabe
que a boa água é a da bica


3
do seu rosto
deixada
uma ravina

cheia de sal
e sentimentos
voadores

espectrando
cicatriz
e chagas

do seu rosto
brota a vida
pinga húmos


4
No catecismo neutro
da química
descoberta do som,
a luz inunda
aquele rio
ruborizado.

Tentei fazer um dique,
uma represa.
mas meus sentimentos
foram poucos
para conter
todo aquele vermelho.

Transbordou.

Tudo. Transbordou.


5
Neste deserto de humanidade
não há oásis nem recantos.
Tudo é paradisíaco
e só falta a égide divina
para exibir as medalhas
que ganhei na última guerra.
que foi ontem.
O sangue ainda escorre
pelas minhas bocas
manchando de verde
e maculando as asas
de alguns anticupidos.
Porém o vermelho deles
deslumbra a cadeia de tv,
pelo menos o dono;
me mostra diariamente
matando os inimigos
no horário nobre.


5
o anticupido
é um anjo enviesado
mas não é um demônio
comum
ele nasce a cada dia
suas flechas ao invés
de unirem
criam uma ilha na pele
e um buraco no âmago
também costumam
criar cores em olhares
e é muitas vezes comum
alguém ficar com as pupilas
negras ou alaranjadas
ou vermelhas
(assim ficam os olhos
do infinito)
lacrimando
o amarelo maikóvski


7
logo
sur-
giram
outros
anti
cupidos
eram
abelhas
enxame
de
asas
vento
mordiscando
arrancando
meus
pedaços
tenros


8
cuspindo mãos e olhos
cupidos dessa dor
comiam uns aos outros

olhando-se lábaros
e tirando do outro
mutuamente a fome

enquanto um comia
e arrancava dos olhos
as asas d’outro

alguns não agüentavam
homens dentro de si
e vomitavam musgos

omeletes inteiros
que continham
arco-íris dentro

viraram panqueca
amarelo e outras
cores gordurosas


9
olhava o mar
por dois séculos
fiquei olhando
a baba da onda

devorando
minhas canelas
e vez em quando
mergulhava

para salvar
um anticupido
que apesar de tudo
só nadava no etéreo

apesar de destruir
com um beijo
ou me deixar
naquele barco vazio

beijando o cais
cadeira balançando
madeira rangendo
pau com pau


10
binóculo pra ver
os olhos do horizonte
óculos pra ver
olhos cadentes

caindo um a um
(depois de percorrer
o universo e voltar
ao local inicial

de onde saíram
os primeiros seres
chamados homens)
filhos de anticupidos


11
ligados
pelo cordão umbilical
da fome
os macacos
surgiram
copulando inocência
e depois de um tempo
havia gorilas
lutando
pela migalha de espaço
nos meus olhos
via satélites
e meteoros caindo
e tudo acabou mais uma vez


12
fiquei entre as labaredas
e o abismo
mais uma vez caí
e pareço estar caindo
ainda
neste século e meio
que se atrasou
a movimentar aquela ampulheta
que o macaco
manuseia
ao bel-querer
(os anticupidos
voltaram ao útero de deus
de onde nada
mais nascia)


X – ESPELHOS


1
todos os espelhos
refletem minha mão
nas águas do pensamento

aqui estão camélias
dromedários e camelos
bebendo de mim


2
enquanto nascem
os oásis enquanto
nascem os desertos

enquanto há bolas
de fogo enquanto
ainda eu chama

enquanto iguana
língua enquanto
linguagem e mosca

enquanto falo
objetos enquanto
animais apenas

enquanto apenas
dicção enquanto
moscas cu’amão

enquanto macacos
bananas enquanto
mascamos chicletes

3
invólucro
envoltório
todas as gemas cadentes caíram no meu território
imbróglio
nasceram flores
no cemitério
é verão
no seminário: inverno
e todos aqueles homens
com tanta roupa


4
com tanta roupa
marinheira Odete
com toda a roupa
boca de grapette
mulher de gostos
ligeiros
vulcão sexual
tipo de mulher que goza
e ela anda nos meus
sonhos pesadelos
e masturbações
de quarta-feira
decai sobre
o meu eu
natureza mortalmente
esculpida
cupido que era ontem
homem

5
penetra-me por pedaços
consumindo-me

(todo o meu pólen
está aguardando

o teu gozo polifônico)

saí então de ti
e tatuei meu eu em

teus braços

tatuagem do que falo
olha-me com espelhos

6
além de ir queimei tua imagem
seda e pluma e javanesa e linho

me vesti com apenas a vegetação
alguma folha de alguma planta

fui ser verde

quando cheguei não havia ninguém
esperando e pouco importava

se eu estava nu ou pomposamente
trajado com aquela folha de não

sei o quê


7
supri-me
contive-me
alienei-me
soquei-me
entreguei-me
para as pilastras
entreguei-me
como uma mulher
se entrega ao homem
e dei o filho
que o mundo pedia
para continuar
(não sei como
os tubos de ensaio
cantaram a canção
que quis)
o certo é que
precisava de um útero
mas só há animais
comendo-se
matando-se
atacando-se
respeitando-se


8
rajadas de sêmen
inocularam uma macaca
e meu filho nasceu
para ser uma seda
uma labareda
de tão humano

distante dos modelos
perfeito e eterno
mar de águas abertas
assim o quero
alado
molhado
seco

(mas por ordem do inferno
nasceu fêmea
machucada
flor brotando
do esterco)

(matei-a e as cinco que vieram
depois dela)

na sexta tentativa
deixei flores crescerem
livres
longe de anticupidos
homens
perto
begônias
abertas
lapelas
lápides
depois


9
construíram-me uma estátua
e uma civilização

todo o dia vem um amigo
e defeca nos meus pés de bronze

voltei ao meu lugar de início
céu vermelho e inferno branco

Que é de onde vejo a parada militar
e todo o litoral do tempo

às vezes me dá vontade de gritar
mas aqui dentro da eternidade

tudo é vácuo, onde nada som/sou
principalmente os meus gemidos

e os gritos de dor e pânico
suor supersônico sulcando pômulos

10
que assim tudo retorne
de onde vim e para onde vou

estou tão só, que seja então
sem aurora e sem crepúsculo

tudo que fui, fui com palavras
nem todas elas tão exatas

e muito bem apropriadas
quanto este ponto no meio do fim

11
estátua
até
epígrafe
Mallarmé
lápide
coroa
cetro
esfinge
brasão
alma
anel
aura
ouro
fantasma
fogo
fugaz
fátuo
feto
células
metástases
elipses
eclipse
fugaz
vou
ar
contagem
agressiva
zero
um
dois
três
quatro
fogo
infinito
busto
bronze
estátua
e



[nada me falta, nada tenho].


>>>>Este poema é a história de uma estátua/eu que ganha vida/carne quando a humanidade acaba devido a um dilúvio de fezes. Daí em diante eu pretendi contar as maravilhas e as escatologias de um mundo em início e ocaso.
Há um outro sobrevivente que vive distante e perto ao qual são devotados o amor e o ódio e as dualidades e dicotomias da vida e a impossibilidade de relacionamento entre seres humanos. Sendo eles do mesmo sexo não garantem um futuro para a humanidade. Até que consigo fertilizar uma macaca e tenho uma filha mulher. Nascem mulheres e a tentação de ser eterno e fundador de uma nova raça faz com que tenha um filho e uma filha com a minha filha. A eternidade é resgatada mas o preço que pago é voltar a ser estátua.
Portanto trata-se de uma metáfora sobre a impossibilidade de ser eterno por que não podemos ser eternos. Há uma sutil e pré-socrática e nietzscheana alusão ao eterno retorno e uma concepção circular de filosofia. Saio da condição de estátua e volto para ela; por isso conto Entreternidades, está passagem chamada vida.
Assim o mar, como diria Rimbaud, se evade no fim da tarde.>>>>


eunuco eu eueu eunu
nu nu cu nu co co
nu cu co co cu eu
eu no cu nu
eu cu no co
nu nu nu co


Thursday, April 02, 2009

4 Comments:

Cássio Amaral said...

sem rasgação , você é um dos melhores poetas e escritor da sua geração.

grande abraço.

muita luz.

shintoni said...

Rodrigo:
Não compreendi direito como você gostaria que postasse o que você me enviou:
- se da forma como está no e-mail, com os links;
- se o texto e o link da entrevista no rodapé.
Aguardo sua resposta para a postagem.
Agradeço a sua participação!

yehuda said...

Rodrigo,
eu sou um cara, talvez muitos sejam, que vive mais dos sentidos do que do frio raciocínio, e desse modo escolhi (vieram a mim) meus ídolos, Rimbaud,Ginsberg, Kerouac,Morrisson, Dylan, Leonard Cohen,Pollock,Stravinsky, Dali,Modigliani, e você meu caro Rodrigo Leão que tive a boa fortuna de conhecer pessoalmente, que bom!
um beijo nas rotundas faces, um abraço e caloroso aperto de mão

Leonardo Morais said...

Poema genial Rodrigo!

Parabéns!

Abs!

 
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