FOLHA DE LONDRINA, HOJE.


LEITURA

Título: Os jardins do cemitério
Retranca: “Todos os Cachorros São Azuis”, novela de Rodrigo de Souza Leão, aproxima a literatura da esquizofrenia

Marcos Losnak
Especial para a Folha2


Todo mundo possui a possibilidade e um dia espanar os parafusos. Alguns, parafusos pequenos. Outros, parafusos bem maiores. O narrador da novela “Todos os Cachorros São Azuis”, obra do carioca Rodrigo de Souza Leão, espanou um dos grandes. Passou um tempo na rede hoteleira do inferno, experimentando quartos e serviços, conversando com outros hóspedes e tentando encontrar alguma luz através das janelas. E retornou para contar sua melancólica aventura.
O narrador de “Todos os Cachorros São Azuis”, lançado pela editora 7 Letras, está internado num hospício após ter quebrado toda a casa na ausência dos familiares. Além do confinamento, seu tratamento consiste em dúzias de comprimidos das mais variadas cores, todos embalados em faixas e mais faixas pretas.
Considera que suas alterações começaram quando engoliu um grilo na juventude. Ou quando teve um chip implantado em sua cabeça num momento de distração. Sua única lembrança afetiva está na figura de um cachorrinho de pelúcia azul que teve na infância e que, misteriosamente, foi perdido. Além de conviver com os loucos do local, em suas visões regulares conversa com os poetas franceses Arthur Rimbaud (1854 – 1891) e Charles Baudelaire (1821 – 1867) que também passam uma temporada no inferno. Após conseguir sair do hospício, o narrador cria uma nova religião (a “Todog”) que arrebanha multidões de fiéis.
Todo o enredo de “Todos os Cachorros São Azuis” se resume basicamente a isso. Um sujeito lutando contra a própria loucura dentro de uma clínica psiquiátrica. A grande surpresa da obra está na linguagem que Souza Leão desenvolve como instrumento narrativo. O autor aproxima a escrita da esquizofrenia. Coloca as duas tão próximas que os limites são quase eliminados e nesse processo cria um tom particular de escritura.
Se uma das características básicas da esquizofrenia está na fragmentação, no estabelecimento de cisões da estrutura mental, a narrativa presente na novela reproduz justamente essa fragmentação, essas cisões. A alucinação é colocada como um componente do real dentro do discurso do narrador. E onde poderia se encontrar apenas lágrimas e tormento, pode-se encontrar boas doses de humor e ironia que invariavelmente olham além das janelas.
Rodrigo de Souza Leão tem conhecimento de causa. Assumidamente esquizofrênico, passou duas temporadas em hospitais e clínicas psiquiátricas. A primeira em 1989, quando tinha 23 anos, e a segunda em 2001. Comeu o pão que psiquiatras e enfermeiros amassaram até encontrar na literatura um porto seguro. Com vários e-books disponibilizados na internet, “Todos os Cachorros São Azuis” é seu segundo livro publicado em formato convencional. O primeiro, “Há Flores na Pele”, que reúne poemas, foi publicado em 2001 pela editora Trema. Atualmente atua como editor (ao lado de Claudio Daniel) da revista virtual de literatura “Zunái” e colaborador site literário “Germina”, além de manter o blog pessoal “Lowcura” (lowcura.blogspot.com).
Enquanto novela, “Todos os Cachorros São Azuis” realiza uma coisa pouco usual. Ao mesmo tempo em que coloca a literatura dentro do hospício, coloca o hospício dentro da literatura. Faz um caminho de mão dupla onde a poesia possui as chaves mais absurdas para escancarar as portas e arrebentar as janelas.
Existe, no interior das páginas do livro de Souza Leão, uma imagem exemplar. O narrador descreve os hospitais psiquiátricos como um lugar de simbolismo exemplar: “Os hospícios são lugares tão bonitos que lembram os cemitérios”.

Serviço:
“Todos os Cachorros São Azuis”
Autor – Rodrigo de Souza Leão
Editora – 7 Letras
Páginas – 80
Quanto – R$ 25


Fragmento:

O que é a solidão? É viver sem obsessões. Mas na vida às vezes a gente tem que escolher entre esmurrar a ponta de uma faca ou se deixa queimar no fogo.
Qual o pior?
Um homem vestido de gelatina deu um beijo dentro da garrafa de Coca-Cola.
Você não deve escrever sobre hospícios.
Não. Todo mundo tem um hospícios perto. Ou é a sua bolsa que é um hospício. Ou sua casa. Ou ainda a carteira de dinheiro. Muita coisa pode ser um hospício. Não falo da desorganização, falo de hospícios mesmo.
Rimbaud apareceu vestido de índio apache. Disse que eu estava virando general Custer.
Havia muitas flores em toda a clínica. Era um lugar bonito. Por isso digo que hospícios são lugares tão bonitos que lembram os cemitérios. Aqueles cemitérios onde há enormes jardins.

(Fragmento de “Todos os Cachorros São Azuis” de Rodrigo de Souza Leão)

Sunday, February 08, 2009

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