NOITE BRANCA

O vinho congelou meu sangue. O inverno congelou quem eu era. As cicatrizes hibernam.

Aquelas marcas de pico viraram verrugas. Minhas sardas ainda tomam conta de mim. Estou tão velho que começo a me lembrar de tudo.

Sou um derrotado crônico. Pronto pra mais uma ilusão.

A alquimia do fogo que a si devora. A chatice do lodo que sobe pelas pernas e eu não tento mais me limpar. O que restou das cinzas já não sou eu.

Engulo alguma química nova. Quem sabe dê certo com um coitado. Não tenho pena de ninguém. Alguém tem pena de mim? Não mereço compaixão alguma. Eu sonho toda noite e não é um pesadelo azul.

Monday, October 30, 2006

LANÇAMENTO


A rigor há somente dois lugares
onde acontecimentos distintos ocorrem
A vítima e suas palavras estão no chão
se não me engano a meio metro da cama
O lençol que por razões óbvias também jaz ali
toca o pé direito e descalço dela
Três ou dois cômodos a separam de imagens
como as do carneiro ou da pia que estão na cozinha
onde há também uma mesa em cuja toalha
estão bordadas as mesmas figuras do texto
Ainda que o tempo de exposição seja parecido
em algumas delas noto maior descompressão
É o caso aqui do prego que oscila entre os cômodos
devido sobretudo ao desprendimento
com que conduz seus propósitos
O mesmo é dizer da mão sobre um dos teus ombros
e do que nela ou na leitura se coagula
– até porque se diz por esta voz
diferente daquela que falava
e ainda fala alguns versos acima –
Assim também com ombro faca estrofe
e outros tantos efeitos de superfície
Em tudo o mesmo gosto de arrependimento


Leonardo Gandolfi : No entanto d'água

Friday, October 27, 2006

Gozo com a terapeuta


Durante o eletro-choque
Dizem que mordi minha mão,
Dizem que mordi a aurora.
Quando o crepúsculo nasceu.

Dizem, pois nada lembro:
- Quem foi? Qual trem?
Qual lua se afogou
Entre as escarpas da testa?

E eletrocutada desabou
Seu leite de gozo eufônico
Na solução de abismo e orquestra,
Que inundou seu ventre vale.


Gozo con la terapeuta


Durante el electrochoque
Dicen que mordí mi mano,
Dicen que mordí la aurora.
Cuando el crepúsculo nació.

Dicen, pues nada recuerdo:
– ¿Quién fue? ¿Cuál tren?
¿Cuál luna se ahogó
entre las escarpas de la testa?

Y electrocutada derramó
Su leche de gozo eufónico
En la solución de abismo y orquesta
Que inundó su vientre valle.


Traducción: Pedro González

Wednesday, October 25, 2006

SUICÍDIO

Não havia saída. Nenhum abismo se abria. Nenhuma porta fechava. Nenhum abracadabra. Não conseguia ficar sozinho. Então eu me joguei dentro de uma caixa de Amplictil.

Vi que no centro só estava eu comigo

Eu dormi no meu suicídio.Acordei para outra vida. Estava dentro de um vidro. Cristo era um suicida?

A vida me agarrou e ainda não me soltou. Quando ela me quiser já estou preparado. Basta um abismo crescer. Nem a eternidade é pra sempre.



Suicidio

No había salida. Ningún abismo se abría. Ninguna puerta cerraba. Ningún abracadabra. No conseguía quedarme solo. Entonces me metí dentro de una caja de Amplictil.

Vi que en el centro estaba solo conmigo.

Me dormí en mi suicidio. Desperté en otra vida. Estaba dentro de un frasco. ¿Cristo era un suicida?

La vida me agarró y todavía no me soltó. Cuando me quiera estoy preparado. Basta con crecer un abismo. Ni la eternidad es para siempre.

Tradução Frederico Nogara

Monday, October 23, 2006

Não adianta fazer força você está numa camisa.
Ela não é bonita e você não acreditou em mim.
De que adianta ter braços agora?
Saber que tudo está no início e não no final.
Você vai passar um tempo com a gente moldando massinha.
Será bem tratado e acorrentado todo o dia antes de dormir.
Viverá com insônia, mas dormirá de olhos abertos.
E as melecas serão grudadas no teto porque ele ficará bem perto.
E o seu silêncio [quando vier] passará a eternidade para existir.

Você ouvirá vozes redentoras que lhe falarão da felicidade.
Agora é só algum segundo depois do enigma ser desvendado.
Jogarão golfe com o seu crânio pré-moldado.
Costuraremos todas as grandes cicatrizes. Mas deixaremos
as menores pra você acreditar que ainda existem.

Monday, October 16, 2006

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Muitas pernas pernas esquisitas pernas de elefantes pernas de lince. Dores na perna na perna de elefante na tromba de um cordeiro. Muitas faces na face dela. Muitos beijos no beijo que dei e tropecei nas próprias pernas. Mal caí e me quebrei. Mal parti e me alonguei como o vento que sacode a enseada e os galhos verdes das árvores que vejo do meu quarto parecem tremer de frio. Eu não sei mais muita coisa e sobre o que falar: perdi as pernas e ouço versos deste lugar sem pernas. Onde está o meu corpo morto? Eu diria que este silêncio me confunde nesta tarde sem binóculos. Não posso ouvir o que digo. Não consigo mais levar minhas pernas pra onde quer que eu vá só levo tentáculos enfurecidos e as cascavéis com seus chocalhos perguntam-me onde estamos indo com tanta velocidade. Pernas pra que te quero. Não consigo entrar. Não consigo sair. Me deixe ficar. Parado. Imóvel. Morrível. Aqui onde ninguém possa tropeçar nas minhas pernas.

Monday, October 09, 2006

PROTEÇÃO ÀS PUTAS

o filho da puta
é o meu filho
porque ela é puta
ser filho da puta
não o incomoda
não a incomoda
não me incomoda
afinal
todo mundo é filho de
uma foda

Thursday, October 05, 2006


a mosca

a mosca é foda
antípoda: poda

voa na neurose
no soslaio de tempo

a mosca oblíqua pousa
numa banana

a mosca é fétida
como o sentimento da asa

que centímetro se fecha
milimetro se abre

no ziper do poema

britadeira no ouvido
arrepio

a mosca é um rio
que cospe glandes

e girassóis
a mosca está em nós

ou estará no rosto absorto
do morto

contrito, duro
naquele escuro que só vôo

Tuesday, October 03, 2006

 
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